As histórias aqui relatadas não citam nomes, para preservar a todos os envolvidos. São relatos de conversas que eu escutei na Rua Javari, na Copinha de 2015, enquanto esperava para adentrar ao estádio na terceira rodada da Copinha, uma vez que a Polícia estava atrasada. São relatos em terceira pessoa.
São-paulino visita a Javari
Uma senhora, torcedora do Juventus, era a mais empolgada entre todos os presentes que estavam na porta do estádio. Num primeiro momento ela encontrou um rapaz são-paulino que estava lá, tal qual eu, apenas para prestigiar as partidas. Ela ficou conversando com ele durante alguns minutos.
“É a primeira vez que você vem aqui?”
“Na Javari é.”
“Mas você é juventino?”
“Não, não, sou são-paulino.”
“Então seja bem-vindo ao nosso estádio. Você deve estar acostumado com o Morumbi, aquele estádio gigante, por isso não repara no tamanho não.”
O homem estranhou.
“Mas aqui cabem quantas pessoas? Quinze mil?”
“Quinze mil?!? Pelé já colocou quinze mil pessoas aqui, mas hoje em dia cabem só cinco mil. Mas o Juventus tem mais torcida que muito time que já ganhou título, que já jogou a Libertadores, como o São Caetano, o Paulista, o próprio Santo André…”
“Eu concordo, e aqui parece que a torcida é bem tranquila, em compensação a da Portuguesa lá perto de onde eu moro…”
Como a mulher deu trela, o homem começou a relatar as várias vezes na qual fora testemunha de brigas envolvendo torcedores lusitanos da janela de casa, e falou um pouco sobre jogos que havia frequentado.
Querendo mudar de assunto e parar de falar do lado ruim do futebol, a senhora lembrou de jogos inesquecíveis para qualquer torcedor do São Paulo, como a final da Libertadores de 2005. A conversa acabou sendo interrompida quando o telefone do homem tocou, e ele passou a se dedicar a tentar explicar pro irmão onde ficava o estádio Nicolau Alayon, na Água Branca.
Santo André na Série A3?
A senhora então encontrou pai e filha, torcedores do Santo André. A menina vestia uma camisa de goleiro do Ramalhão, que havia ganhado de presente do Neneca anos antes e era fanática pelo Santo André.
A senhora tentava convencer os dois de que Juventus e Santo André haviam jogado no ano anterior em Santo André, e que ela inclusive havia comparecido ao jogo. Porém, isso não havia acontecido, e o homem discordava.
“No ano passado não, porque o Santo André estava jogando a Série A2 e o Juventus a Série A3. Pode ser que tenha sido no ano retrasado.”
“Tem certeza que o Santo André não tava na A3?”
“Absoluta. A gente nunca caiu pra A3.”
A mulher estava quase convencida de que o jogo a que se referia teria mesmo sido em 2013, quando o homem levantou a hipótese de que este houvesse sido em Diadema, contra o Água Santa. A mulher, no entanto, retrucou com segurança.
“Não, em Diadema eu nunca fui.”
A garota então interveio.
“Nem queira ir.”
“Por quê?”
A menina então disse que havia feito o pai a levar para conhecer o estádio, mas que achou a localização ruim e os arredores perigosos, o que não é de se espantar. Nas velhas brincadeiras sobre as cidades do ABC, Diadema sempre teve a fama de ser a cidade mais violenta.
Os idosos vão alugar a Javari…
Do nada, chegou ao portão do estádio um senhor, muito nervoso. Ele chamou um funcionário do Juventus, que estava dentro do estádio, e passou a exigir dele, com ar de revolta, um espaço reservado na sombra.
“Vocês têm que reservar lugares para os idosos, porque eu quero ficar na sombra, mas sempre que eu venho aqui eu tenho que ficar no sol. Isso é um absurdo!”
Tentando manter a calma e não xingar nem rir da cara do senhor, o rapaz ainda tentou explicar que não era assim que a vida funcionava.
“Senhor, se nós formos reservar alguma parte do estádio para os idosos, vamos ter que reservar o estádio inteiro. O Juventus tem muita tradição e muitos idosos sempre vêm aqui. Se o senhor quiser encontrar lugar na sombra, tem que sair mais cedo de casa.”
O homem se afastou do portão, ainda mais revoltado, dizendo que era um absurdo e xingando tudo o que via pela frente. O funcionário ainda deu risada e trocou uma ou outra palavra com dois torcedores que estavam por ali, e foi pra alguma parte na área interna do estádio. Os dois torcedores não se conheciam, mas continuaram conversando. E um deles tinha uma boa história pra contar sobre idosos e futebol.
Lembranças de uma época que não volta
“Quando eu era adolescente eu costumava jogar bola na rua. Eu e minha turma ficávamos chutando a bola no portão da casa de um velhinho, que vira e mexe aparecia na varanda e pedia pra gente parar de fazer barulho. Lá pelas tantas, nós chegamos à conclusão de que ele estava na razão dele, então passamos a encher garrafas de água ou de areia pra montar os gols no meio da rua, mas continuamos jogando bola no mesmo pedaço da rua, porque lá não passava muito carro.
A bola praticamente não batia mais no portão do cara, mas de vez em quando a gente acertava lá. Uma vez a bola bateu no portão por acidente. Esse homem saiu da casa dele, a gente pensou, lá vem bomba. Mas ele não falou uma palavra com a gente, só ficou parado bem no meio da rua, que era pra atrapalhar nossa brincadeira, pra ver se a gente chutava a bola nele, sei lá o que o velho queria.
A gente desviava por um lado, dava um drible de vaca do outro, se virava como podia pra não deixar de jogar. E uma hora aconteceu que eu acertei a bola nele. O cara veio pra cima de mim querendo me bater, e eu de cabeça quente passei uma rasteira nele. Nisso a filha dele já saiu de casa, ajudou ele a levantar, e levou pra dentro. A gente achou que ia ficar nisso mesmo, por isso continuamos jogando.
Passou uns dez minutos e chegou a polícia perguntando quem foi que tinha agredido um idoso. Eu assumi a culpa, daí a polícia chamou meu pai e foi todo mundo, ele, meus amigos, o velho e a filha parar na delegacia. Nesse dia eu fiquei com medo. Tinha acabado de fazer 18 anos e achei que fosse dar ruim.
E o tiozinho chegou na delegacia falando um monte de abobrinha. O delegado interrogou todo mundo, a gente explicou o que tinha acontecido e bom, no final das contas eu tive que pagar os óculos dele, que ele disse que quebrou quando eu dei a rasteira nele, e o delegado falou que ele não poderia impedir ninguém de jogar bola na rua. Tem uns idosos que são realmente uma figura.”